TEXTO CAMPEÃO

O texto que segue é o escrito por Mairã, aluna do 2º ano do Colégio Estadual Antonio Lemos. Este texto venceu como o melhor da região norte no concurso promovido pelo ministério de políticas públicas para as mulheres. Leia e entenda porque é um texto campeão.


AMAZÔNIA
mística e realidade de gênero
Mairã Soares Sales
Escola Estadual de Ensino Médio Antonio Lemos
                       
                        “A morte da floresta é a morte de todos nós”, repetia Dorothy Stang antes de ser assassinada por jagunços numa estrada empoeirada do Sul do Pará. A morte de Ir. Dorothy, mulher, religiosa, idosa, americana, foi um choque para o mundo que presenciou, mais uma vez, a violência contra a mulher, mais um exemplo de brutalidade e machismo na luta pela posse da terra no sul do Pará.
                        Esta mulher escondia um segredo, com seu sangue a Ir. Dorothy lançou um desafio nas questões de gênero para a Amazônia e para o mundo.  Não era só Deus e o pequeno agricultor que ela amava.  Ir. Dorothy tinha uma paixão e uma angústia, paixão e angustia compartilhada por todos que experimentam a vida na floresta amazônica.  Ela caminhou por suas trilhas, de pés descalços, em tapetes de folhas mortas, sentiu as vozes dos pássaros, o cheiro da terra molhada, o estrondo da chuva se aproximando, o esturro da onça num acampamento noturno. O segredo da Ir Dorothy era a paixão pela floresta, terra fofa e grandes arvores, um ser vivo que respira, cresce, sussurra palavras, ... e por esta paixão, morreu.  Sentiu também uma angustia profunda, testemunhando a devastação, a grande mãe sendo violada.
                        Em todas as escolas do mundo se repete que a Amazônia é o pulmão do mundo, isso é real, cientificamente provado. No coração de Dorothy a grande floresta, além da ciência experimental, era muito, muito mais. Segredos e Mistérios que encerram a origem da vida, vislumbrados por mitos e rituais que os índios ainda celebram na escuridão de suas ocas ou nos terreiros iluminados pela luz velada da lua. Mãe carinhosa dos povos que nela habitam, índios, quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricultores. Como a Floresta, toda mulher é mistério.  Ir. Dorothy, com sua morte, denuncia que a Floresta-Mãe Terra, mulher, o mistério da geração da vida, na Amazônia continua sendo violentado e pisado por uma mentalidade machista, dominadora, consumista.
                        No nosso contexto amazônico a maior fonte de luz, de sabedoria, vem da floresta, da terra, que nos ensina sua mística: a Floresta é mulher, nos cuida, nos cura, nos alimenta no delicado processo de germinação e na alegria da colheita, é a fonte essencial de toda vida.  Do seu ventre todos nascemos, respirando seu ar tecemos nossas vidas e no fim descansamos no afago de seu seio.
                        Da mesma forma que esta floresta – mulher, mistério da vida, é violentada, aqui na Amazônia existe também, muitas vezes justificada como tradição e cultura, uma clara exploração e desigualdade entre homens e mulheres.  A pobreza e a ignorância, a falta quase total do Estado, empurram as meninas para a prostituição, ao longo das estradas, dentro dos grandes caminhões de carga, nos bares das pequenas vilas e das grandes cidades, nos barcos de passeio, nas balças, por uns poucos trocados ou uma lata de sardinha. Parece ineficaz e solitária a luta de tantas mulheres amazônicas que labutam solidárias contra todo tipo de violência, exploração e desigualdade.  Assim como tantas arvores novas são diariamente derrubadas, tantas meninas são violentadas, seu mistério violado.
                        Antes de buscar respostas para mudar a nossa realidade é preciso tomar conhecimento da real situação em que nos encontramos já que cada região tem sua cultura, sua forma de organiza-se e, consequentemente, a sua forma de exploração e violência. Os povos milenares nos deixam como herança a preferência pelo filho homem. A mulher tem a obrigação de casar-se com o homem que o pai escolher para o trabalho na roça, para a expansão de seus negócios. Os tempos mudaram e esta menina precisa viver a sua infância, ter tempo suficiente para madurecer física e psicologicamente, programar e construir o seu futuro. A mudança deve partir de uma leitura critica das culturas dos povos amazônicos para que os mesmos cheguem a reconhecer a autonomia, respeitem as decisões da mulher, sem obrigá-la a viver sua vida subjugada a uma cultura escrava da tradição e voltada para o masculino.
                        Na maioria das pequenas cidades rurais e ribeirinhas a única diversão pública são as festas noturnas, embaladas a bebidas, ao som extremo de aparelhagens, a menina moça, pobre, ingênua e desinformada, torna-se presa fácil dos homens que a cercam, acaba ficando marcada por um namoro proibido. Muitas vezes os pais, vitimas desta mesma desorientação, acabam entregando a filha como fosse mercadoria. A moça namora um homem mais velho. Repentinamente fica grávida. Todos se perguntam, o comentário é geral, quem a engravidou? Será que foi o boto? Na maioria das vezes é mais uma mãe solteira. A menina larga os estudos, ainda no ensino fundamental. As escolas oferecem uma educação pobre na formação científica e humana, os professores são mal pagos e mal qualificados, muitas vezes meros repassadores de palavras e noções insignificantes. O que resta, o destino destas moças, mães solteiras, é morar na casa dos pais, cuidarem da casa, criar seus inúmeros filhos e trabalhar na roça.
                        No casamento a nova família se localiza geograficamente próximo á mãe da menina (matrilocal), lá a mãe auxilia na criação de seus netos e dá suporte às dores da filha. O marido tem todo o domínio das finanças da família. Como a maioria das famílias do interior é religiosa, o casamento é indissolúvel e por toda a vida a mulher tem que aguentar violências e humilhações. È comum o medo de deixar o companheiro, sair da propriedade e passar fome com seus filhos.  A violência vai aparecendo com o tempo, mas o grito fica na garganta da mulher, silenciado pela família, pela sociedade, pela impunidade e principalmente por temer o futuro incerto dos filhos. Na certidão de casamento a profissão do homem é ‘agricultor’ e da mulher ‘dona do lar’, uma profissão legalmente não reconhecida, mesmo que o trabalho na roça seja pertinente aos dois.
                        Os poderes públicos locais não sabem lidar com as questões de gênero.  Nos casos de violência sofrida por mulher, nas poucas vezes em que a denuncia é levada a uma delegacia, os policiais não registram a ocorrência, banalizam, constrangem a vítima.  Quando registrada, a maioria retira a queixa e se prepara para a próxima surra. Como conseqüência a mulher é desestimulada a procurar e exigir seus direitos.
                        Frente a esta situação é necessário que a solução destes problemas saia da cabeça e da organização de todas as amazônicas e não venha em fórmula pronta de outra realidade, muitas vezes incompatível com a nossa.
                        A mudança começa na cabeça do homem e da mulher. Vem por suas própria mãos, libertando-se do peso de preconceitos seculares. Como uma árvore se sustenta se tem raízes profundas na terra, a luta pela igualdade entre homens e mulheres nasce e cresce das bases. A semente da mudança germina no local, na mente de poucas mulheres corajosas, que agregam tantas outras causando, inicialmente, pequenas transformações que acabam se tornando globais, chegando, finalmente à construção da igualdade.
                        Os desafios são muitos, é necessário também o apoio das autoridades para que o combate à desigualdade se torne, de fato, uma realidade.  São necessárias políticas públicas eficazes, capazes de enfrentar e superar as raízes da discriminação e da violência, sobretudo a pobreza e a ignorância.
                        A pobreza na Amazônia somente pode ser vencida com projetos econômicos sustentáveis, que respeitam e valorizem o meio ambiente amazônico. A ignorância pode ser superada mediante a implantação de uma educação escolar de qualidade, que priorize a formação crítica, seja participativa e voltada à cidadania, que saiba valorizar com sabedoria as diversas formas de cultura, e, saiba estigmatizar e condenar todo tipo de discriminação e violência causada pela desigualdade de gênero.
                        Assim estaremos juntos na construção de uma sociedade mais justa, onde as relações de gênero sejam fundamentadas a partir de um novo modelo de viver em família e em comunidade. Um modo de viver baseado no diálogo, respeito, solidariedade, amor, carinho e confiança. Um futuro onde homens e mulheres possam sonhar e construir sua história de maneira solidaria e participativa.